CORPO E ALMA
Crônica de Paulo Castelo Branco

As esperanças já estavam no fim. Parecia que as preces não eram ouvidas, e que Deus, lá no céu decidira que a hora do encontro estava próxima. No quarto de hotel, o enfermo não comia e balbuciava palavras desconexas. A filha, ao lado da cama, segurava um pedaço de mamão e retirava pequenas quantidades para oferecer ao pai moribundo. Ele, sem ânimo, recusava a comida.

Ele adormeceu e ela, deixando uma enfermeira em seu lugar, se retirou abatida e desanimada. No saguão do hotel, observou do outro lado da rua, algumas pessoas conversando alegremente. Percebeu que se tratava de um restaurante. O toldo amarelo anunciava: "Paraná Café & Bistrô" Esperou sua vez e sentou-se numa mesa ao meio de pessoas com semblantes desanuviados. Nas mesas, as conversas se multiplicavam: uns falavam de cirurgias, outros de moda, outros de corridas de cavalos e automóveis. Alguns, mais jovens, discutiam sobre arte, teatro e música. Numa mesa ao fundo, ouviu alguns senhores de branco falando de política. O restaurante parecia uma babel.

Ela deixou-se levar pelo ambiente e até sorriu para um ou outro cliente, que, mesmo não a conhecendo, abria um sorriso e desejava-lhe bom dia. O restaurante foi esvaziando, e um dos garçons se aproximou e disse: Aqui é proibido ficar triste. O Paraná é lugar para, mesmo por instantes, se esquecer das agruras e curtir a boa mesa e um bom vinho. Ela sorriu e i rapaz se apresentou: - Sou Sebastião, um dos sócios da casa. Os outros são o Petrônio e o Nivaldo. Eu fico no caixa, o Petrônio é responsável pelo atendimento, e o Nivaldo pelo resto. Na verdade nós somos os mágicos que movimentam e dão vida ao lugar. Logo em seguida, Petrônio chegou com uma taça de vinho e Nivaldo com uma torta alemã. Sentaram-se à mesa e brindaram: Vida feliz, sempre! Ela desatou a chorar.

Depois da crise de choro, ela se recuperou e contou a sua história: pai estava desenganado atingido por doença grave. Nada comia ou bebia. Sebastião perguntou-lhe o que o pai mais gostava de comer. Respondeu que ele adorava banana frita. Sebastião foi à cozinha e preparou um prato com a banana desejada e pequena porção de purê de mandioquinha, A moça recebeu a oferenda e saiu.

Em meia hora lá estava a filha agradecida. O pai, ao sentir o cheiro agradável de banana, comeu tudo e pediu mais, disse alegremente. O homem não resistiu à doença, mas se foi feliz.

É assim o "Paraná". Não só alimenta o corpo, mas socorre almas. Fica bem ali na Rua Barata Ribeiro, em frente ao Hotel São Charbel, em São Paulo. Entre seus clientes, estão pessoas recuperadas por mãos hábeis de cirurgiões. Freqüentam, também, médicos, enfermeiros, motoristas de taxi, esposas, mães, pais, artistas, empresários, advogados, políticos, escritores e, dizem, almas do outro mundo que retornam para agradecer os últimos momentos de alegria. Ninguém nunca confirmou nenhuma presença, mas agora que o restaurante fica aberto até as 22 horas, os clientes sentem um ambiente mais suave e agradável, como se algum amigo estivesse sentado na cadeira ao lado. Foi assim que me senti outro dia, como se estivesse comigo o meu irmão Beto, velho parceiro de uma cerveja gelada. Se não fosse proibido fumar, teria a certeza da sua saudosa presença.

Crédito: Revista Abrange (Medicina Social de Grupo)

 

 

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NA GÁVEA
Crônica de Paulo Castelo Branco

O bistrô ficava do outro lado da rua. No hotel, do seu apartamento, avistava o toldo amarelo e os pés dos clientes aguardando a vez. Observou o restaurante numa visão melhor. Havia um banco com três lugares e, pouco acima, duas cadeiras, uma mesa redonda com um cinzeiro e um vaso de lírios brancos naturais. Um biombo delimitava o acesso. No balcão, três bancos altos. Daí em diante não enxergava mais nada. A claridade externa embaralhava o interior do bistrô. A fila andava lentamente. Quando acabou a fila, atravessou a rua e pediu ao jovem recepcionista uma mesa solitária.

Foi encaminhando para a mesa no topo da escada. Acomodou-se e pediu uma taça de vinho tinto; - dacasa -, alertou o garçom. Às suas costas havia algumas mesas, mas não se interessou em virar para observar os clientes. Bebericou o vinho e examinou o cozinheiro com seu uniforme branco e chapéu alto. Não parecia francês e falava português com sotaque nordestino.

Nas viagens que fizera pelo mundo, em visitas a restaurantes sofisticados, identificou muitos cozinheiros parecidos e com sotaques semelhantes. Quando se interessava em saber a naturalidade dos mestres, eles sorriam e respondiam: - Sou igual a você, sou brasileiro e nordestino. Sentia orgulho em encontrar conterrâneos nos mais distantes cantos do planeta.

Desligou-se das reminiscências e voltou o olhar para o armário antigo, pintado de branco, que guardava pratos e copos. Era dele que os garçons retiravam as peças do serviço. Sobre o armário, algumas máquinas de moagem de café. Seguiu com o olhar até encontrar a janela branca de um depósito ao lado da escada. O garçom interrompeu a investigação, perguntando se gostaria de outra taça de vinho. Aquiesceu e percebeu, bem próximo á sua mão, quatro interruptores na parede. Curioso, acionou o primeiro e, o ventilador fixado na parede em frente, começou a funcionar. Desligou-o. O segundo interruptor apagou as luzes do salão. Pediu desculpas e o religou. O terceiro interruptor, ao ser acionado, movimentou uma cortina sobre as mesas, e a luz do sol penetrou no ambiente. Deixou, por instantes, o sol bater sobre as pessoas. Incomodados, alguns clientes pediram para fechar; o garçom interferiu, atendeu os reclamos e desligou a carretilha. Não mexeu no quarto interruptor com receio de que o fundo do bistrô desabasse.

Com nova taça em suas mãos, pediu torradas para acompanhar o vilho. O garçom trouxe o pedido e mais uma pequena garrafa d´água, sem gás. Olhou para o alto; p relógio com anúncio de cigarros, marcava 13:30 hs. Abaixo dos ponteiros, o dia e a temperatura ambiente: 25.08.2006, 20º. O anúncio dizia: "Crie em excesso e fume com moderação". Pensou em acender um cigarro, mas o aviso sobre a escada alertava-o da proibição. Se quisesse fumar, deveria ir para a mesa da porta, na calçada. O frio estava intenso e, além disso, perderia o lugar. Desistiu. Pediu o almoço. Talharim com carne assada. – Sem pressa, disse ao garçom.

Enquanto o prato não chegava, voltou a perscrutar o ambiente. Observou que, abaixo do corrimão da escada, havia uma porta e uma janela com batente. Sobre o batente, um vaso de flores. A escada tinha seis graus e, ao final dela, a primeira mesa. Uma mesa com suas cadeiras. Nelas estavam sentados dois jovens. Ele, forte e alto, e com tatuagem de dragão no braço musculoso. Ela, loira e mignon, com cabelos curtos. Estava agasalhada, enquanto seu acompanhante parecia não sentir frio com a camiseta apertada. Não trocavam palavras; s´´o comiam. Mastigaram o prato do dia em minutos e saíram em direção ao caixa. Quando se aproximaram do caixa sumiram do campo de visão. Da moça, pôde observar que pagava a conta e usava uma dessas calças baixas que deixam à mostra o "cofrinho", o antes denominado rego. Riu ao constatar como as coisas mudam. No seu tempo de jovem, nunca viu uma mulher com roupa tão ousada. Até as calcinhas cobriam os regos. Mas, se agora os tempos são outros, aproveitava para tentar colocar algumas moedinhas, quando passava pelas moças desprotegidas. Agia e ria de si próprio. Nunca nenhuma ficara ofendida. Relevavam, considerando que ele era muito velhinho e deveria estar decrépito. Não estava. Fazia só de sacanagem.

O prato chegou e renovou o pedido da terceira taça de vinho. O garçom o alertou para os perigos do álcool, mas não se importou. Foi mastigando o alimento com vagar.

No salão principal, contou sete mesas para quatro pessoas e outra para duas pessoas. Esta ficava colada ao biombo que delimitava a entrada no bistrô. Do extenso balcão, que começava na entrada e ia até o forno de preparo de sanduiches, avistava somente algumas partes. Uma delas era a vitrine de doces. À distância, não conseguia identificar o que havia nas prateleiras, mas, nas mesas, os pratos de sobremesas surgiam com pedaços de pudim de leite, sem maisena, como afirmava a doceira. Havia "Petit Gateau" com sorvete de creme, e um doce de coco e leite condensado. Uma maravilha que deixava as mulheres em desespero querendo e não podendo comer. De vez em quando uma se entregava à gula e entrava em êxtase com a delícia. Sobre o biombo da entrada, um balaio usado em colheita de café e, nas paredes, bules, moedores, peneiras, fotos e outros apetrechos que, da mesa de observação, não era possível identificá-los.

O piso de lajotas é na cor bege, enquadrado com ripas de madeira escura. Ficou atento com a chegada de um casal de idosos. Sentaram-se à mesa de dois lugares próxima do biombo. Ele aparentava oitenta anos de idade; ela, um pouco mais nova. Ambos se vestiam com apuro. Pediram o vinho da casa e brindaram. Não enxergava o brilho dos olhos dos dois, mas sentiu que eles estavam felizes, Ele afagava as mãos da companheira, e ela devolvia o carinho com sorrisos. Imaginou que os dois viviam, há longos anos, a parceria amorosa. Achou que ele havia recebido bons resultados de seus exames médicos, pois, quando entrou no bistrô, acomodou, sobre uma cadeira, um envelope branco com uma cruz azul e alguns dizeres que, à distância, eram impossíveis de leitura. Pelos carinhos que os dois trocavam, deduziu que viveram longos anos juntos, tiveram filhos, netos e, quem sabe, bisnetos. Agora, naquele instante que deveria ser o auge de uma luta pela vida, eles estavam exatamente como vivem os amantes da vida inteira: sós, na alegria e na tristeza; na saúde e na doença. De longe, seus olhos se encontram, quando perceberam que havia um observador olhando-os. Ele, descoberto, levantou um brinde e foi correspondido.

Na segunda mesa, estava um homem solitário. Lia uma revista que retirara do balcão localizada abaixo do caixa. A revista parecia ser uma daquelas de fofocas, pois só se via fotografias grandes com um pequeno texto ao lado da foto. O homem disfarçava um sorriso e passava as páginas com rapidez. Não denotava interesse maior na publicação. Seu prato chegou, e ele deixou a revista sobre uma das cadeiras. Olhou a refeição com desânimo, parecia que não sentia fome; no entanto, após alguns segundos, iniciou furioso ataque ao prato. Comeu tudo quase sem mastigar, com se quisesse se livrar logo do alimento. Ao final, bebeu dois copos d´água, pediu a conta e saiu apressado. Na mesa vaga, sentou-se um homem gordo vestido com um suéter quadriculado e colorido. Sorridente, cumprimentava as pessoas com intimidade. O garçom se aproximou. Vestia o uniforme composto de calça jeans e camisa na cor mostarda. O caixa deixou momentaneamente seu posto e trocou algumas palavras com o homem. Deram gargalhadas sobre algo que o observador não conseguia ouvir ou entender. Quando o caixa se retirou, chegou uma jovem que beijou o homem nos lábios. Sentou-se. Iniciaram um diálogo aparentemente interessante. Ela abriu uma mochila e lhe mostrou algumas gravuras. De longe, pareciam paisagens européias. O homem separou algumas gravuras e entregou à moça notas de cem reais. Ela se levantou e se despediu, novamente com um selinho. Foi embora. O homem escolheu seu prato e pediu uma garrafa de cerveja importada. Durante longo período, se dedicou a examinar as paisagens, Levantava-as e as expunha contra e a favor da luminosidade. Estava admirado com o trabalho. Ao final, pagou a conta e saiu se despedindo de cada um dos demais clientes. Quase na porta, encontrou com um homem vestido de branco. O observador achou que ele era médico, ou enfermeiro. O dono das gravuras entregou-lhe uma, e o abraçou em sinal de agradecimento. O presenteado fez gestos de recusa; no entanto, não resistiu perante a insistência. Colocou a gravura encostada na parede e ficou admirando com expressão embevecida.

Ali, na gávea do bistrô, o observador podia imaginar o que quisesse sobre as pessoas freqüentadores do local e, até mesmo, criar histórias para cada situação que estava presenciando. Voltou a examinar a história do casal de idosos. Será que eles seriam mesmo casados? Ou seriam irmãos que há muito não se encontravam? Se fossem irmãos, deveriam ter vivido bons momentos na infância e juventude, pois trocavam palavras, denotando que suas histórias eram de fatos comuns e de muita duração. Desviou o olhar para a dupla que entrava. Eram, sem dúvidas, homossexuais e não aparentavam nenhum constrangimento na relação. Não podia identificar qual das duas fazia o papel masculino, como, no seu tempo de jovem, imaginava que era fácil identificar. Ao longo dos anos, foi percebendo que as relações homossexuais haviam se firmado como o amor que não se confessa e, obtendo a aceitação e o reconhecimento da sociedade de que cada um faz da vida o que quiser, fortalecendo nele a convicção de que, entre as paredes do quarto, os parceiros se ligavam absolutamente na concepção de que o amor é livre. Percebeu que as moças conversavam alegremente e trocavam palavras com os outros freqüentadores do bistrô. Não agiam com afronta aos demais fregueses, mas, também, não se limitavam por estar em lugar público. Do mesmo jeito que chegaram, saíram com desenvoltura. Pareciam felizes.

Um grupo de homens e mulheres entravam ruidosamente no bistrô que, a esta altura, estava com todas as mesas ocupadas. Buscaram assento nos tamboretes altos que ficavam no balcão utilizado para o serviço de sanduíches. De onde estava, não conseguia ver as fisionomias; só enxergava as costas e as pernas. Como estavam bem perto da escada próxima à gávea, que utilizava para observar o bistrô, ouvia os comentários sobre o dia intenso de trabalho. Uma das mulheres, de mini-saia, fazia movimentos sensuais passando as mãos sobre as coxas e nádegas. Ficou alguns minutos acompanhando os movimentos e os achou bonitos. Pensou que a moça deveria ser bailarina, pela fortaleza dos pés e a graciosidade do corpo.

O garçom perguntou se Le desejava a conta. Respondeu que sim e pediu que, junto, fosse servido um café "carioca".l O pedido foi atendido com tanta presteza que imaginou estar sendo expulso do bistrô para que outro cliente pudesse ser atendido. Percebeu que já estava na gávea há três horas. A pequena bandeja, decorada com grãos de café, trazia dois biscoitos e um minúsculo copo d´água com gás que, segundo o garçom, serviria para aguçar o sabor da rubiácea. Experimentou a sugestão e sentiu que realmente o sabor do café se tornara acentuado. Conferiu a conta e deixou uma nota de 50 reais, suficiente para cobrir a despesa e conceder ao garçom boa gorjeta. Levantou-se lentamente para observar, ainda, alguns detalhes do local. Queria que ficassem fixados na memória para escrever alguma coisa sobre o bistrô.

Ao passar pelo balcão dos doces, esbarrou na lata de lixo que quase foi ao chão. Balançou, balançou, mas não caiu. Pediu desculpas ao balconista e reparou que o biombo da entrada não estava no esquadro perfeito.

Saiu, olhou para um lado da rua, para o outro, e seguiu calmamente para a travessia. A rua apresentava uma pequena elevação que impedia a visão de algum veículo que transitasse em maior velocidade. Foi o que aconteceu. No terceiro passo, foi atingido por uma ambulância. Caiu no chão e foi atendido imediatamente por dois enfermeiros e um médico. No último suspiro, com a vista turva, ainda conseguiu ler no crachá do médico: Sebastião Petrônio O+.

Crédito: Livro Artigos e Crônicas VICE-VERSA - Editora Dom Quixote

 

 

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